segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Elisete Cardoso sempre divina!

Elizeth: uma voz insuperável

Por Julio Cesar de Barros

Filha de um seresteiro, a cantora Elizeth Cardoso, a Divina, ainda menina ouvia a mãe cantar as músicas românticas que dominavam as ondas do rádio na voz de supercantores, como Francisco Alves e Vicente Celestino. No subúrbio da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde nasceu, foi comerciária, operária e cabeleireira, até que em plena adolescência foi convidada a se apresentar no rádio, iniciando uma carreira que só a tiraria de cena em 1990, dois meses antes de completar 70 anos. Elizeth foi a preferida de chorões, como Jacob do Bandolin, que a carregou para o rádio ainda tão jovem, mas se popularizou cantando sambas tradicionais e, principalmente, sambas-canção. Sua voz, doce, delicada, de grande extensão e afinadíssima, encantava o público, mas sobretudo os colegas de profissão. Porte altivo, elegante, séria, tornou-se uma figura admirada sob todos os aspectos. Embora atraída para a música pelo cancioneiro romântico cantado pelos vozeirões que reinavam no rádio de sua infância, Elizeth acabou por imprimir um tom mais sóbrio aos clássicos da seresta, estabelecendo uma serenidade interpretativa que a levou a aproximar-se da fossa, que nos anos 50 infestou bares e boates da Zona Sul do Rio, redutos fortemente influenciados pelo jazz, onde as canções de romantismo derramado perdiam em contundência sonora e ganhavam contornos intimistas, mais apropriados aos ambientes aconchegantes, esfumaçados e regados a uísque. Locais onde até os velhos sambas ficavam mais maneiros, mais bossa, como diziam os cantores do samba sincopado.

Elizeth e Zimbo Trio: Sei lá, Mangueira (Paulinho da Viola e Hermínio B. de Carvalho):


Elizeth passou pela fossa e pela Bossa Nova de maneira natural e, embora longe de ter-se consagrado uma musa da nova onda, o que nunca foi, brilhou no marco do movimento, o disco antológico Canção do Amor Demais (1958), no qual Tom Jobim e Vinícius de Moraes assinam todas as faixas, entre elas alguns eternos exemplares do gênero, como a canção título do LP, além de Chega de Saudade, Serenata do Adeus e mais dez canções. No disco, aparecia um violão que revolucionaria a batida tradicional do samba, com sutis desenhos assimétricos nos acordes, conferindo um andamento originalíssimo a Chega de Saudade e Outra Vez. Por trás do bojo afinado, o baiano João Gilberto. Mais tarde, Tom Jobim justificaria assim, a escolha de Elizeth para gravar o disco: “Elizeth era aquela voz, aquela cantora que a gente ficava feliz quando ouvia”. Nada menos técnico e mais convincente. A verdade é que o novo disco estava ainda impregnado do romantismo que escapava dos vibratos da cantora. Dolores Duran, fiel à fossa, era mais bossa que a Divina. A Bossa dos barquinhos sobre ondas de um mar azul ainda estava por vir. Esse pé no velho samba-canção e no samba rasgado, e outro na moderna Bossa a levaram a apresentar um programa de nome sugestivo na TV Record de São Paulo: Bossaudade (1965).

Com Jacob do Bandolim: padrinho

A longa jornada da cantora até o estrelato é uma saga típica das artistas de seu tempo. Cantou no rádio, contra a vontade da família, um sonho realizado muito cedo. Mas para ganhar a vida teve de apresentar-se em circos, dancings e clubes suburbanos, rebolou e cantou no teatro de revista, foi crooner de orquestra, não sem antes submeter-se à condição de taxi-girl, na luta pela sobrevivência, após um casamento breve e fracassado, no início dos anos 40. Com Grande Otelo, com quem amassou muito barro apresentando o quadro Boneca de Piche pelos circos das periferias longínquas, fez uma de suas famosas duplas, que incluíram ainda temporadas com os renomados Ataulfo Alves e Cyro Monteiro. Seu primeiro disco (Braços Vazios, de Acir Alves e Edgard G. Alves, e Mensageiro da Saudade, de Ataulfo Alves e José Batista) só foi gravado em 1950, e foi um fiasco. Foi recolhido por causa de problemas técnicos. Mas em seguida o compositor e humorista Chocolate deu a ela o primeiro sucesso: Canção do Amor (com Elano de Paula): Saudade/ Torrente de paixão/ Emoção diferente/ Que aniquila a vida da gente/ Uma dor que não sei de onde vem! A repercussão lhe valeu convites para fazer televisão, nos seus primórdios, e números musicais no cinema. Participou de diversos filmes, a partir de então: Coração Materno, de Gilda de Abreu, É fogo na Roupa, de Watson Macedo, O Rei do Samba, de Luís de Barros, Carnaval em Lá Maior, de Ademar Gonzaga, Na Corda Bamba, de Eurides Ramos, Com a Mão na Massa, de Luís de Barros, e Pista de Grama, de Haroldo Costa. No filme Orfeu do Carnaval (1959), de Marcel Camus, Elizeth aparece na trilha sonora com as canções Manhã de Carnaval e Samba de Orfeu.

Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá e Antonio Maria:


Mas sua consagração foi o samba Barracão (Luís Antônio e Oldemar Magalhães, 1953), música que jamais sairia de seu repertório. Seu primeiro LP, Canções à Meia-luz (Continental) só apareceu em 1955, com clássicos da choradeira inspirada que marcou a década, como Canção da Volta (Ismael Neto e Antonio Maria), Nunca Mais (Dorival Caymmi), Só Você… Mais Nada (Paulo Soledade) e Pra que Me Iludir (Norival Reis e Radamés Gnattali). Estava consolidada a carreira da cantora, que passaria o resto da vida reinando na música popular brasileira como a Divina, dama maior da nossa canção. Modelo a ser seguido pelas novas cantoras. Padrão vocal ideal, admirado pelo público, pela crítica e pelos músicos, principalmente. Elizeth deixou uma discografia abundante, tendo participado de inúmeros trabalhos. Entre seus discos mais importantes, estão o já citado Canção do Amor Demais (1958), Naturalmente (1958), Elizeth Interpreta Vinícius (1963), Elizeth Sobe o Morro (1965), A Bossa Eterna de Elizeth & Cyro (1966), A Enluarada Elizeth (1967), Elizeth Cardoso e Zimbo Trio Balançam na Sucata (1968), Elizeth no Bola Preta com a Banda do Sodré (1970), É de Manhã, com Zimbo Trio (1970), Elizeth e Sílvio Caldas (Vol. 1 e 2, 1971), Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim e Zimbo (1977), Elizeth Cardoso (Vol. 1, 2 e 3, 1980), Elizetíssima (1981), Uma Rosa para Pixinguinha (1983), Ary Amoroso (1989). Outro disco que marcou foi resultado de um show realizado em 1968, em recital único no Teatro João Caetano, reunindo Elizeth Cardoso, seu descobridor Jacob do Bandolim, o Zimbo Trio e o conjunto Época de Ouro. O show foi visto por 1.500 felizardos.

Elizeth canta Barracão, samba rasgado:

A consagração de Elizeth poderia ter sido sua escolha por Jobim e Vinícius para interpretar as canções daquele disco marcante, que inaugurou a Bossa Nova. Mas o reconhecimento do público e da crítica já estava cravado. Em sua biografia Elizeth Cardoso, Uma Vida (1994), Sérgio Cabral a apresenta como a ponte entre o samba tradicional e a Bossa de Tom e Vinícius, como que dando à novidade uma chancela de quem vem da raiz. Dela escreveu o crítico musical e pesquisador João Máximo, no jornal O Globo: “A voz morena, a alma seresteira, a emoção em tons certos, a sinceridade de intérprete, nenhum outra esteve tão afinada com o estilo brasileiro de cantar música popular romântica”. No ano 2000, o Jornal do Brasil se referiu assim à cantora, que seria homenageada com quatro espetáculos no Centro Cultural Banco do Brasil, no décimo ano de sua morte, no Rio: “Em um universo de divas mais ou menos tempestuosas, Elizeth foi um oceano pacífico querido por todos”. Mas a tranquilidade da cantora não se estendeu aos seus herdeiros e admiradores e a homenagem descambou para uma pendenga judicial. O Espetáculo Divina: 80 anos de Elizeth, foi montado sem a autorização do herdeiro Paulo Cesar Valdez, que na Justiça conseguiu suspendê-lo. Os advogados do CCBB conseguiram por meio de liminar que a peça fosse encenada com restrições. O CCBB e a Sarau Promoções, produtora do musical, tiveram de eliminar todas as imagens da cantora dos programas e galhardetes promocionais da peça.

Se Todos Fossem Iguais a Você, de Tom e Vinícius:


Na observação de João Máximo, a homenagem, justa, nem chegaria perto de apresentar o real valor da cantora: “Não se poderá constatar a grandeza de Elizeth pelos quatro shows. E por um simples motivo: só se dimensiona a arte de um cantor através de sua própria voz. Os shows podem ter roteiro de Sérgio Cabral, biógrafo de Elizeth; podem ter excelentes músicos (Maurício Carrilho, Paulo Sérgio Santos, Pedro Amorim, Leandro Braga); e podem ter competente time de cantoras (Zezé Gonzaga, Alaíde Costa, Áurea Martins, Soraya Ravenle). Mas não têm o principal: a voz de Elizeth”, escreveu no Globo. No Jornal da Tarde, o crítico Mauro Dias não economiza o verbo para pintar o retrato da cantora: “A Divina, foi uma das mulheres mais elegantes do Pais, no sentido mais amplo: tinha dignidade estampada na fisionomia, transparente na expressão, sublinhada no porte, acentuada no canto, no infalível bom gosto e acerto ao escolher o repertório e na forma de cantá-lo”. E ponto final.

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