terça-feira, 19 de outubro de 2010

Entrevista


A música me ama.

Paulo César Pinheiro não tem controle as canções, que brotam. Elas já renderam parcerias com gente de cinco gerações e um baú pronto para servir a outras tantas


PC Pinheiro, durante entrevista em um bar de Copacabana (Foto: Luciana Whitaker)



Você está numa cidade imaginária. Siga pela Avenida Baden Powell e entre na Travessa Elis Regina. No fim da viela, descanse na Praça João Nogueira, junto ao Monumento à Clara Nunes, bem no Cantinho do Sabiá, em frente ao conservatório musical Dorival Caymmi. Passe para a outra quadra, e na esquina da Rua Eduardo Gudin com a Maurício Tapajós tome alguma coisa no Bar Pixinguinha, onde não entra quem não tem caráter. É possível que Vinicius e Tom estejam por lá. Depois, caminhe pelo Bulevar Aldir Blanc. Você verá o Museu de Arte Mauro Bolacha Duarte e o Grupo Escolar Radamés Gnatalli – talvez no jardim espie a professora Luciana pastorando Lenine, Diogo, Marcel, Bena, Alice e outras crianças, observada de longe pela diretora Suely Costa. Pare no caixa automático do Banco Sivuca e saque algumas notas musicais, a moeda corrente nessa cidade, com população de mais de 2 mil composições, chamada Paulo César Pinheiro. Trata-se de um lugar sem pragas nem ervas daninhas, sem armas nem homens de mal, espécies extintas pelas cinzas de um carnaval.


Nesta entrevista, concedida numa tarde de setembro no Bar Getúlio, em Copabacana, PC Pinheiro fala um pouco dessa cidade da criação, e da inexplicável inspiração que o torna o compositor da música popular de mais vasta obra de todos os tempos. Levam sua assinatura obras tramadas com parceiros de cinco gerações, de Pixinguinha, que hoje teria 113 anos, a Alice, 20, filha de Dori Caymmi. Uma pequena amostra desse acervo o poeta, de 61 anos, descreve no saboroso livro Histórias das Minhas Canções, lançado recentemente pela Editora Leya. E como ele não consegue nem faz questão de explicar direito, em prosa, de onde vem seu poder da criação, os versos a seguir, que não estão no livro, talvez o faça:


“A música me ama, ela me deixa fazê-la. A música é uma estrela, deitada na minha cama. Ela me chega sem jeito, quase sem eu perceber. Quando me dou conta e vou ver, ela já entrou no meu peito. No que ela entra a alma sai, fica meu corpo sem vida. Volta depois comovida, e eu nunca soube onde vai. Meu olho dana a brilhar. Meu dedo corre o papel, e a voz repete o cordel que se derrama do olhar. Fico algum tempo perdido até me recuperar, quase sem acreditar se tudo teve sentido. A música parte e eu desperto pro mundo cruel que aí está. Com medo de ela não mais voltar. Mas ela está sempre por perto. Nada que existe é mais forte, e eu quero aprender-lhe a medida de como compõe minha vida, que é para eu compor minha morte.” (Do disco Parceria, gravado em 1994, com João Nogueira.)


Em meio a uma obra tão vasta, como conseguiu eleger as canções que botou no livro?


Já estou preparando o volume 2. Eu já tinha listado, a princípio, 100 histórias, só por ser um numero redondo. Mas quando chegou na sexagésima eu percebi que o livro estava ficando muito grande. Eu não tinha ideia de que as histórias iam se estender. Achei por bem parar, porque se fosse fazer as 100 o livro iria para umas 600 páginas, ia ficar muito caro. A produção acabou ficando boa, a editora é muito boa. Todo mundo que me diz que leu, diz que leu numa tacada só.


Seu ponto de partida foi Viagem, sua primeira composição?


Na verdade eu comecei antes dela, mas todo começo é um rascunho de vida. Até começar a sair pra valer. E saiu pra valer com essa aí, eu tinha 14 anos (Oh, tristeza me desculpe, estou de malas prontas...). Daí em diante, eu fui fazendo sem nem me dar conta do que aquilo era na minha vida.


Você foi compondo as canções e as canções iam compondo você?


Com certeza. É uma simbiose. A música começa a fazer parte da sua história, da sua vida. Música é isso, observação. É muita inspiração, mas muita observação da vida, das pessoas, dos personagens, do sentimento humano.


Era uma época particularmente privilegiada da criação musical do Brasil, né? Tudo que vinha do DNA do Caymmi, do Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Villa Lobos estava em plena ebulição na obra de sua geração.


A minha talvez tenha sido, até agora, a última grande geração de compositores do Brasil. Isso vai desembocar em algum momento em algum lugar. Mas acho que ainda são os mais atuantes. Todos da minha geração ainda estão atuantes no dia a dia. Toda hora alguém lança um disco novo, músicas novas, ninguém parou. Está todo mundo com mais de 60 anos, indo para os 70 e criando sem parar.


E isso em um momento de interrupção. O golpe de 64 significou um país interrompido na formação da sua identidade. E essa geração de poetas, artistas, músicos não se deixou interromper.


É porque essa geração se formou antes. A interrupção interferiu no que viria na sequência, mas essa minha geração já estava formada no final dos anos 1950. Quando o golpe aconteceu, em 1964, esse grupo já tinha de 16 a 20 anos. Era muita gente. Uma geração rica, de todo canto. O pessoal da Bahia, gente do Rio e de São Paulo, os mineiros, os paraibanos, como o Geraldo Vandré.


Você chegou a trabalhar com o Vandré, ou foi só com o Théo de Barros (parceiro dele em Disparada)?


Com o Théo. Temos um trabalho muito grande, e grande parte desse trabalho ainda é desconhecido. Ele recentemente gravou um disco e botou ali quatro músicas nossas. Temos umas 40 e tantas músicas inéditas.


Aliás, você...


Eu sou o compositor de maior obra na música popular de todos os tempos. Já falaram até que é caso para o Guiness Book. Tenho mais de 1.150 músicas gravadas e outras mil ainda na gaveta. E continuo compondo, não parei. Tem muita gente gravando músicas minhas, alguns discos inteiros só de músicas minhas. Se contar, na história da música brasileira, talvez o mais próximo disso seja o Braguinha, que deve ter umas 700. Eu vivi para isso, eu dediquei minha vida a compor.

E a primeira grande parceria foi com o Baden?
 

 
O Baden foi o cara que sacou tudo isso. Eu digo sempre com gratidão e com um misto de assombro. Naquele momento, eu era parceiro do João de Aquino, que era primo do Baden, que conheci por meio dele. Nós éramos vizinhos de bairro, numa pracinha em São Cristóvão (zona norte do Rio). O João tocava acordeon – o pai dele era cearense –, depois aprendeu pandeiro, violão. Eu, menino ainda, já tinha muita admiração pelo Baden, que já era um nome mundial. E na década de 60 inteira a parceria Baden-Vinícius já era muito forte.



Os santos deles batiam.


E além de tudo, tem isso. Meu assombro foi a visão do Baden diante de um menino começando a fazer música, ele já celebridade, referência de toda a minha geração. Eu tinha 16 anos quando ele me ofereceu uma parceria. “Vamos fazer música juntos?” Aquilo pra mim foi um choque, um espanto. Mas ele já estava antevendo o que ia acontecer comigo.


E você nem imaginava que um dia ia viver da sua música?


Nem pensava, eu comecei a fazer a faculdade de Direito. No terceiro ano tranquei a matrícula e nunca mais voltei. Mas eu nem pensava que a música pudesse ser uma profissão. Meu espanto pelo Baden é acima de tudo essa antevisão que ele teve, de que eu poderia ser esse compositor que eu sou hoje. Ele me abriu as portas. Quando fiz com ele Lapinha, a primeira, eu tinha 16 anos (Quando eu morrer me enterre na Lapinha/ Calça, culote, paletó e almofadinha). Dali em diante, a gente embalou, fizemos cerca de 100 músicas, tudo gravado, muita coisa foi sucesso, muita coisa está na cabeça das pessoas até hoje, se tornou referência para as gerações seguintes. Baden me apresentou todo mundo.


E daí veio a ciumeira do Vinicius de Morais?


Começou aí. O Vinícius sempre foi um sujeito ciumento, possessivo. Eu não o conhecia direito. Eu tinha 16 e ele, 52. Meu espanto foi esse: por que um homem de 52 anos, diplomata, na época, escritor maravilhoso, poderia ter ciúme de uma criança? O tempo botou as coisas no lugar e nos tornamos grandes amigos, nos visitávamos, ele ia pra minha casa eu dia pra dele. Até a hora da morte dele ficou muito junto.


O bilhete que você recebeu dele e reproduz no livro é algo antológico na vida de alguém.


Pra você ver até que grau ia a amizade depois... [Dizia o bilhete: "Para o Paulinho, De pai pra filho e de e filho pra pai, sem pai e sem filho, sem filho e sem pai, e com muito amor pelo filho que eu poderia ter (e não tive) mas que é como se tivesse. E aproveitando pra mandar ele pra puta que me pariu, o coração amigo, paterno, fraterno, inferno do seu Vinicius."]


Você compôs e conviveu com gente que participou muito intensamente da sua criação, da sua vida. Muitos morreram cedo. Foi crendo que "a vida é mesmo uma missão e a morte é uma ilusão" que você suportava essas perdas?


Com certeza, perdi muitos parceiros, muitos. Tanto de minha geração como de gerações anteriores. Fui parceiro de duas gerações antes da minha. Pixinguinha hoje estaria fazendo 113 anos, estou com 61. Eu fiz músicas com Radamés Gnatalli (1906-1988), Mirabeau Pinheiro (1924-1991), Alcyr Pires Vermelho (1906-1994), enfim, alguns deles hoje centenários, e outros do meu momento, Baden, Tom, João Nogueira, Mauro Duarte, Maurício Tapajós, Raphael Rabello, Sivuca... Foram morrendo meus parceiros... (pausa). De qualquer forma eu fui me adaptando a gerações mais novas e hoje tenho também parceiros de 19 anos. Quer dizer, eu tenho um parceiro de 113 e um de 19 (risos).


O João Nogueira foi também uma parceria muito rica, das mais intensas?

Foi. Nós começamos a fazer música em 1972, então, foi uma parceria muito longa. E ele não era só meu parceiro. Era meu companheiro de farra, de boemia.


Foi ele que o convenceu a fazer um tributo à Clara Nunes.


Exatamente. [Clara Nunes morreu aos 39 anos, em 1983, depois de um mês na UTI, vítima de um choque anafilático. Cinquenta mil pessoas velaram seu corpo na quadra da Portela. Paulo César, casado com ela desde 1975, recolheu-se a ponto de mal conseguir falar do assunto. João Nogueira insistiu que fizesse um samba-tributo. Dizia: "Só você tem autoridade pra fazer esse samba. Se não fizer, vai pintar uma enxurrada de samba ruim sobre o assunto". E saiu Um ser de Luz: "... Mas aconteceu um dia/ Foi quando o menino Deus chamou/ E ela se foi pra cantar/ Para além do luar/ Onde moram as estrelas (...) Canta, meu sabiá, voa meu sabiá, adeus, meu sabiá/ Até um dia!"] João era meu amigo, meu compadre, eu sou padrinho de uma filha dele. Aliás, parceria não é só um trabalho de compor junto. É amizade, é convivência, senão não funciona.



Você ainda assina em baixo da tese do Pixinguinha, “beber só faz mal pra quem é mau caráter”...



Não é bem assim. É “beber só faz mal pra quem não tem caráter”. E assino embaixo.


A sua Trilogia no Alumbramento – as músicas Súplica, O Poder da Criação e Quando Eu Canto – é a melhor explicação sobre como trabalha a cabeça do compositor?


Tentei explicar o que muita gente me pergunta sempre. “Como é que você faz?” “Você precisa estar triste, ou feliz?” “Precisa de alguma coisa especial?”... Essas perguntas eu ouvi a vida inteira. Eu não preciso de nada disso exatamente. A música dentro brota, não sou quem faço, ela nasce sozinha. Então, eu não preciso estar triste ou feliz, num lugar especial, bonito ou não. Posso estar preso num cubículo que eu faço música. Ela extrapola qualquer tipo de ambiente, a música não é racional. É uma missão. E que assumi como tal, acho que eu vim para isso. Para deixar uma obra que faça bem à humanidade.


Você se diz agnóstico, mas sempre tem uma explicação mística, proveniente do desconhecido, de alguma energia para sua criação?


São as explicações que a gente tenta buscar, não sei. Não compreendo. Não atribuo coisa nenhuma a nenhum tipo de religião. Eu tento entender à minha maneira, com a minha visão, as coisas. Na verdade a gente não sabe nada, não sabe por que veio, por que está aqui, por que vai morrer, isso está além da nossa compreensão.


Esse lance que você diz de ter sensações, visões, presságios, ouvir vozes, foi algo pontual, episódico, ou é recorrente?


É recorrente. Desde que eu comecei. Quando eu comecei a fazer meus primeiros versos, compor minhas primeiras melodias, isso começou em mim. São histórias intermináveis, misteriosas, eu não sei explicar e por não saber explicar eu não atribuo a coisa nenhuma, a religião nenhuma, a nenhum tipo de crença. Não sei explicar, simplesmente. Mas eu vejo gente, eu escuto coisas, acontecem coisas sobrenaturais comigo o tempo inteiro.


E as mil e poucas músicas que você ainda tem guardadas, tem planos pra elas?


Não, elas vão saindo lentamente. Da mesma forma que eu vou fazendo por fazer, às vezes eu faço por encomenda. É um filme, e pedem uma canção tema, é teatro, é novela. Canções com tema oferecido e você escreve em cima do tema. Mas isso é um trabalho à parte, eu faço música por fazer, a música vem e eu vou fazendo. E vai acumulando. À medida que as pessoas vão procurando pra perguntar se tem alguma música nova, inédita, eu vou tirando do baú. Vou abrindo o baú e vou espalhando. Ultimamente, por exemplo, tem sido gravada muita coisa minha. Eu sempre tenho. Quando me procuram, eu só pergunto qual é o gênero que a pessoa quer (risos). Samba-canção? Bolero? Valsa? Samba? Choro? O que você quer? Tem, está no baú, é só vasculhar e escolher.


Quando você fala de "encomenda" não tem só encomenda profissional, né? Muitos amigos, parceiros, pediram coisas para preencher uma determinada situação emocional, um momento...


Também, lógico. A Elis era a rainha das encomendas. Volta e meia me ligava já com uma coisa na cabeça.


Você menciona no livro uma cantora de samba, nos anos 70, que deixou Elis incomodada a ponto de ela pedir um samba pra cutucar a concorrente (Cai Dentro)? Quem era?


Ah, isso eu não posso falar.


Pô, conta aí, eu juro que não conto pra ninguém.


Isso daí eu não falei no livro e não vou falar pra você. De jeito nenhum (risos).


Você parece carregar um traço de generosidade. É característica nata, ou desenvolveu com o tempo, com as parcerias?


Nasci em berço pobre. Meu pai era operário, tinha dois empregos. Conheci meu pai praticamente com 11 anos de idade, porque antes eu nunca o via de tanto que ele trabalhava. A gente morava numa vila de operários, da Light, em Jacarepaguá (zona oeste do Rio). A família dele, paraibano, é toda nordestina. Eu visitando parentes meus via a miséria que era. Da parte da minha mãe, meu avô era pescador, com família grande. Na casa dele não tinha luz, era lampião de querosene; não tinha gás, era fogão a lenha; a água era a de um riacho do lado. A casa era uma tapera. Minha avó, por parte de mãe, é índia guarani de uma tribo que ainda existe em Angra dos Reis, Bracuí. Saído desse meio não pode dar ninguém que não seja assim. Eu sou meio índio, meio sertanejo, tenho isso na minha essência, está no meu sangue, está no gene.


Eu falei dessa generosidade porque você, acolhido naquele meio criativo de sua época, também acolheu muita gente jovem que veio depois, como o Lenine, que não voltou pro Nordeste porque você insistiu pra ele ficar e deu no que deu.


Muita gente. Sempre fui assim.




Algumas composições suas parecem premonitórias. "O Dia em que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assisitir o desfile final...", você fez com Wilson das Neves em...



É observação. A gente que não está no meio da correria da sobrevivência a qualquer custo pode sentar e observar. Eu paro num balcão de bar pra tomar um café e escuto aquelas pessoas que estão ali. Às vezes uma frase de um bêbado me faz fazer um samba. A observação é algo muito forte em mim, e tendo tempo pra observar o seu tempo você começa a ver na frente o que vai acontecer. A previsão da violência urbana, dos morros descendo pro asfalto, do medo do pessoal do asfalto, das armas. Da destruição da natureza.


Quando você fez As Forças da Natureza a degradação ambiental era assunto restrito ao meio científico.

Nem existia. A música é de 1976 e já alertava: vai haver catástrofe, vai acontecer coisa ruim. O homem está destruindo seu mundo e é claro que esse mundo vai se voltar contra ele. Aí começa a passar na sua cabeça uma sequência de filme, e você vai até 30, 40 anos adiante. Isso desemboca na minha obra. Parecem coisas místicas, mas são mera observação.

E as novas gerações de compositores, e também de consumidores de música, estão ligadas?

Estão observando o mundo ao seu redor?

Muita gente está. Não essa moçada da mídia. A moçada que segue a mídia não está. Mas a moçada que está ao largo da mídia, à margem da mídia, está buscando caminhos, sim. Eu conheço muita gente, muito compositor bom, que está escondido, em guetos praticamente, e que vive da música. Meus filhos, por exemplo, são compositores. A Escola Portátil, por exemplo, é um foco disso. A Lapa, que voltou a ser a Lapa de outros tempos, é o coração da vida noturna do Rio. A zona sul acabou. A Lapa foi renascendo, crescendo, se desenvolvendo e ramificando. Agora já está indo para a praça Tiradentes, para o cais do porto...

São redutos que vão além das baladas comerciais?

Exatamente. E grande parte dos músicos que sustentam essa música da Lapa está saindo da Escola Portátil.

E o que é a Escola Portátil?

É uma escola que foi criada pela minha mulher Luciana (Rabello) e pelo Maurício Carrilho pra ensinar choro, principalmente porque os nossos filhos não tinham muito ambiente musical. Então eles resolveram criar essa escola pra juntar esses meninos que escutavam as coisas em casa mas que na rua não tinha. E foi crescendo. Conseguiu recentemente uma casa na rua da Carioca, entre a praça Tiradentes e o Largo da Carioca – em frente ao Bar Luís, pra ser mais específico. Era um pedido antigo. Uma casa tombada pelo patrimônio, caindo aos pedaços, e o governo do estado cedeu. Eles estão com projetos já em começo de construção, mantendo a fachada da casa, claro, e por dentro reformando tudo. A escola provisoriamente funciona na Uni-Rio, na Urca.

E como funciona? As pessoas pagam mensalidades? É para pessoas de baixa renda?

A maior parte das pessoas é pobre. Alguns pagam, outros não, existem bolsas. É uma casa de quatro andares, vai ter um terraço e já começaram as primeiras obrinhas. As salas de aula vão estar todas ali. Vai haver um teatro, como espaço de espetáculos e para gravações. Vai haver um estúdio para gravar tudo o que vai acontecer ali. Quer dizer, as pessoas estudam ali, praticam lá em cima, num terraço, num botequim tomando cerveja, e depois fazem shows e gravam no teatro. É bem bolado. Não é um projeto social para tirar menino da rua, não. É um projeto para formar cidadão e formar profissional. É para ele sair dali um profissional de alguma coisa da música. Não é só um projeto que vai lá, tira o menino da rua e não ensina nada de arte.

Você acha que a arte ainda é um grande canal de formação de uma nova consciência, essa que o planeta precisa para resistir ao desgaste causado pelo homem?

Com certeza.

Fale sobre as gravadoras, a indústria da música, comparando aquela época efervescente com os dias de hoje. Tem-se a impressão de que a qualidade daquela época pautava mais o rumo das gravadoras, e que hoje elas é que pautam seus artistas, e pela mediocridade.

Nessa época rica a que você se refere cada gravadora tinha cerca de 90 artistas em seus elencos. A Odeon tinha isso, a Phillips, tinha por aí, a CBS, a RCA Victor. E os diretores daquela época eram pessoas de outro tipo de gosto. E às vezes até músicos. O (Roberto) Menescal foi diretor da Phillips. Hoje a atribuição dessa escolha não é artística, é do marketing, que dita as regras e opina o que vai vender e o que não vai. As gravadoras por sua vez estão acabando no Brasil. Foram diminuindo, vendendo seus estúdios, que eram maravilhosos, e reduzindo seus castings. E ferramentas novas foram chegando. A gente tem de aprender a lidar com elas. Agora, eu só acho que o direito autoral precisa ser respeitado, ainda está havendo discussão em torno disso. E acho que a internet é um sistema muito mais democrático do que o das rádios.

E as rádios, continuam iguais a sempre?

As emissoras de rádio são concessões públicas, a maioria é de políticos, e a regra do jogo em rádio que toca música é ditada por esse marketing de que falei antes. Os horários estão comprometidos. Existe o famoso jabá, a compra disso. E se quem está chegando não tem como botar seu disco para tocar em rádio nenhuma, migra para a internet. Está mais democrático. A rádio toca a mesma coisa no Brasil inteiro. Música achatada e pasteurizada, não tem leque aberto. Pelo menos na internet você ouve o que você quer, busca o que você quer.

Hoje muita gente produz e cuida de vender seus próprios CDs.

Pois é, naquela época eram contratados muitos artistas... E hoje também é tudo muito rápido e passageiro. Naquela época, os diretores artísticos investiam muito nos artistas e durante muito tempo. Hoje se um artista não dá certo num disco ele morre, acaba. Naquela época, o Milton Nascimento, para citar um exemplo, começou a ser conhecido depois do quarto disco, mas a gravadora ia arriscando, dando condições para o cara sabendo que o cara era um artista de verdade. Então tinha mais esse tempo de desenvolvimento, que não existe mais. Hoje é tudo muito veloz. Não deu certo, joga fora, bota outro.

As novas ferramentas oferecem também uma alternativa à indústria do disco. Como pode um lançamento ainda custar em torno de R$ 35, R$ 40? Quem compra? E quando alguém compra, que fatia vai para o artista?

É caro. O ganho vai depender do contrato, como uma gravadora ou uma independente que vai distribuir. Pode ser 10% do preço de loja, pode ser 7% ou 15%. Mas um disco custar R$ 35 é caro. Devia ser mais razoável esse preço. Por causa disso a pirataria se instala e aí esculhamba todo o resto. Quem compra um CD por R$ 5 na mão do camelô não vai dar R$ 35 na loja. O preço devia ser mais razoável, mesmo com todo o processo de feitura do disco, que é caro também, mas não a ponto de ter de custar R$ 35, R$ 40. Tem que ter um meio-termo.

Onde você mora hoje em dia? Fale um pouco da sua cidade.

Em moro em Laranjeiras, mas eu já morei em tudo que foi canto do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro é o meu quintal. Eu nasci em Ramos, onde hoje é o Complexo do Alemão, barra pesada. Passei parte da minha infância em Jacarepaguá, na zona oeste, onde ainda havia fazendas de gado, hortas. Morei em São Cristóvão, primeiro no pé do morro de Mangueira, na rua Ana Neri, depois no pé do morro do Tuiuti – minha adolescência, final de infância, foi nos morros. Por isso eu entendo bem dos morros. Depois morei em Copacabana, no Jardim Botânico, morei no Leblon, na Barra da Tijuca, morei em Jacarepaguá de novo. Estou agora em Laranjeiras, e só saio dali para o (cemitério) São João Batista.

Toc, toc, toc...

Eu morei em todo canto e por isso sou um conhecedor da cidade. Fazendo boêmia, passei por todos os lugares, nos subúrbios da zona oeste, da zona sul, da zona norte mais distante. Conheço bem, não conheço de me contarem. Talvez eu tenha sido um dos compositores que mais falou da cidade do Rio de Janeiro.

Das pessoas da sua geração, com quem você convive mais hoje, e com quem ainda compõe?

Edu Lobo, Dori Caymmi, Francis Hime... Foram os que sobraram.

Nunca fez nada com o Chico Buarque, o Paulinho da Viola? Não são da mesma turma?

Não. Somos da mesma turma, mas eles fazem tudo. O Chico não precisa muito de parceiro. O Paulinho faz sozinho também, e tem alguns parceiros, Elton Medeiros e tal. O Chico esporadicamente faz com alguém. Fez mais com o Francis, como Edu, por trabalhos encomendados também. E aí como nós fazemos música e letra, todos... o Edu não faz tanto letra, já fez, o Dori não faz, então essa minha convivência em parceria com eles é mais por isso.

E dessa safra nova, mais jovem?

Eu sou hoje parceiro dos filhos dos meus parceiros. As minhas companhias hoje são o Bernardo Lobo (o Bena, 37 anos), Diogo Nogueira (29), o Louis Marcel e o Philippe (28 e 32 anos, filhos do Baden) – o Philippe é meu afilhado, inclusive, de batismo). A filha do Danilo Caymmi, Alice (20), é minha parceira. Então sou parceiro dos meninos que peguei no colo. Sou parceiro dos meus filhos. Isso daí é impagável. Você pegar uma criança no colo, e 20, 30 anos depois você ser companheiro de trabalho dessa pessoa, ser parceiro dessa pessoa, é difícil explicar a sensação. Quer coisa melhor?

E o que você está preparando agora?

Tem vários livros pra sair. Lancei um no final do ano passado, lancei outro agora, há dois meses, em curto espaço de tempo. Tem um segundo romance para sair que eu espero que seja lá pelo meio do ano que vem. Tem um livro de sonetos para sair, outro de histórias de personagens, figuras, do tipo daquele cara que nós cruzamos agora há pouco ali na praia, que parou, e queria bater um papo, não-sei-o-quê. Figuras como essa tem a dar com pau, em cada esquina, e eu conheci muitas. É um livro chamado Figuras desse meu Povo. Eu lembro de figuraças dessas, anônimas, e conto as histórias. Então, tem três livros para sair. Tem um disco que sai agora em novembro, pelo selo Quitanda, da Betânia, que é da Biscoito Fino, chamado Capoeira de Besouro, que são as músicas que eu fiz para a minha peça teatral Besouro Cordão de Ouro.

Tem a ver com o filme Besouro?

Não. O filme foi chupado de mim, mas não tem nada a ver. Foi até bom não ter nada a ver com a minha história. Eu tenho uma peça, que estreou em 2006, e que aliás, no mês que vem vai reestrear em São Paulo, no Sesc Pompeia. E o disco que eu gravei com as músicas da peça sai em novembro. E tem muitos projetos aí pra frente, fora discos de cantores só com músicas minhas. Aliás, soube anteontem que estou concorrendo ao Grammy Latino com duas músicas, uma com Edu Lobo e outra com Dori Caymmi – Tantas Marés, que é o nome do disco do Edu, e Quebra Mar, disco do Dori, ambas gravadas recentemente. O Dori concorre na categoria de música e de melhor disco. Eu já ganhei um Grammy, se ganhar vai ser o segundo, vou começar a colecionar (risos). É isso? Posso ir tomar meu chope?
Por: Paulo Donizetti de Souza, Revista do Brasil



Publicado em 14/10/2010

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