segunda-feira, 12 de abril de 2010

O que Gilberto Gil não disse no filme sobre Jards Macalé, o maldito

Tom Zé, Maria Bethânia, Augusto Boal, Gal Costa, Piti, Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso



Por ARNALDO BLOCH



Andei ouvindo de novo “Gil luminoso”,

disco só de violão e

voz, aquela versão de “Aqui

e agora”. Que violão toca o

Gil! Aí fui ver o documentário “Jards

Macalé — Um morcego na porta

principal”, de Marco Abujamra e

João Pimentel, em cartaz no Rio.

Que violão toca o Jards, “Macao”

pros íntimos... Sou fã dos dois, conheço

mais a obra de Gil, mas o luxo

e a inteligência de Macalé, artista,

enter tainer, humorista, cantor, ator,

autor, me assombram a cada dia.

Não é uma voz fácil. Como diz

Luiz Melodia, é para “ouvidos atentos”.

Jards é maldito. Xingou multinacionais,

queimou-se um bocado,

o boquirroto. Gil, num depoimento

gravado quando ministro, comentou,

no filme, esse aspecto, de um

modo que me entristeceu.

Disse Gil que houve artistas de

sua geração, como ele próprio e

Caetano, que cuidaram de suas carreiras,

construíram cada trabalho

com uma certa lógica, em que as

roupas, as capas, os conceitos musicais

e poéticos, tudo fazia um sentido.

(Inclusive, suponha-se, Caetano

não ter dado a Jards o crédito pela

sonoridade de “Transa”, um golpe

duro na sua... carreira.)

Gil diz que, outros, como Macalé,

não cuidaram da tal carreira. Abandonaram-

na ciclicamente. Disse-o

com um certo ar de lamento, sem

nada acrescentar do ponto de vista

de um julgamento de valor. Depois,

respondendo a uma pergunta, admitiu,

com franqueza, que transigiu,

que cedeu, que fez concessões. E

justificou: é lógico!, afinal, a própria

existência do “outro”, a admissão

de que não estamos sós na dinâmica

social, pressupõe concessões,

então como é que não se vai fazê-las?,

Gil altissonou com uma veemência

daquelas que tornam a sentença

uma evidência inclemente.

“Faz parte do ethos e do pathos”,

acrescentou, e aí eu me lembrei que,

em cena anterior do filme, Macalé

fala dos patos (sem agá), dizendo

que, certa vez, as aves, ao ouvi-lo

cantarolar à beira de um lago, responderam

aos volteios de seu canto

cheio de detalhes, repiques, síncopes,

repetindo suas inflexões. Pois,

segundo Macalé, é da natureza dos

patos ouvir música e responder, e

eu acredito: isso ocorre com outros

pássaros também, quem já cantou

na floresta sabe.

O Gil, ao proferir essas verdades

elegantes, não tinha qualquer obrigação

de atentar para o fato de que,

mesmo tendo abandonado ciclicamente

sua carreira, Macao, o conjunto

da obra, ainda que difícil, para

loucos e raros (ao menos por aqui,

pois em Paris ele seria visto como

um grande cantor histriônico, de

uma expressividade singularíssima)

constitui um todo caótico e uno, paradoxal,

complexo, culto.

Gil não tem qualquer obrigação,

tampouco, de atentar para outro fato:

o de que, entre não transigir e

não fazer concessão alguma (impossível)

e fazer o máximo de concessões

possíveis, há gradações. E que

a evidência de que Macalé fez poucas

concessões constitui a formação

da figura que ele é, confere-lhe a

sua originalidade, a sua qualidade

única. Gil não tinha obrigação de dizer

isso nem de prestar qualquer

homenagem ao cantar demiúrgico e

ao violão pós-Baden Powell posto

no liquidificador das emoções e do

sofrimento e do amor mais intransigentes,

e à sua maneira própria de

ser pop sem parecer pop.

Num documentário de Andrucha,

Gil, citando Andy Warhol, diz que, se

ser pop é gostar das coisas, ele é pop

no sentido de “gostar de gostar das

coisas”; se Gil, então, gosta tanto de

tudo, se abraçou tanto o mundo em

seu arcabouço tropico-antropofágico,

se Gil elogiou tanto o trabalho de Sandy

e exaltou tanto Ivete Sangalo, será

que custava muito deixar umas migalhas

de reconhecimento ao gênio de

Macalé, o pato? Não precisava nem

dizer, como disse o Zé Celso Martinez

Corrêa no filme de Abujamra e João

Pimentel, que Macalé é da estatura

artística “de uma Maria Callas ou de

um Oscar Niemeyer”. A gente sabe

que Zé Celso sempre fala através de

hipérboles, embora faça um certo

sentido, para quem olha o Macalé como

um ser múltiplo, um mascarado

de Gotham City, um super-homem

mautneriano mas abençoado com

mil-e-uma técnicas e arquiteturas,

compará-lo a Callas e a Niemeyer sem

que isso se converta numa equação

de equivalência perfeita, ora pô!

Vejo, talvez equivocadamente, se

for me corrijam, a fala de Gil como

uma justificativa. Um statement que,

mesmo inconscientemente, ilude o

receptor, induzindo-o a mergulhar

numa hiper-relativização que na

verdade não relativiza nada e acaba

por desaguar no maniqueísmo. O

certo é cuidar da carreira, o certo é

embarcar numa lógica contínua, o

certo é fazer as concessões que a

cada ser forem adequadas, e cada

ser colherá os benefícios (de agir

assim) enquanto os que não rezarem

por essa cartilha, os “outros”,

colherão a erva daninha do “maldito”,

saco de gatos no qual Macalé,

junto com tantos outros, foi jogado.

Primeiro para se o excluir do “sistema”

e, depois, para trazê-lo de volta,

sob um selo que iguala e uniformiza,

para efeito de venda, todos aqueles

que não “cuidaram” de suas carreiras

e, mesmo assim, lá no fundo,

bem escondidas atrás das barricadas,

têm uma puta expressão artística

e são grandiosos e insólitos. Gil,

meu ídolo, não tinha obrigação de

dizer isso, mas a gente não controla

as expectativas sobre nossos ídolos

e, por isso, fiquei triste, mas vou lá

ouvir de novo o violão luminoso de

Gil e, depois, ver de novo o Macalé

brilhar no cinema. Não percam.

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