Tom Zé, Maria Bethânia, Augusto Boal, Gal Costa, Piti, Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso
Por ARNALDO BLOCH
Andei ouvindo de novo “Gil luminoso”,
disco só de violão e
voz, aquela versão de “Aqui
e agora”. Que violão toca o
Gil! Aí fui ver o documentário “Jards
Macalé — Um morcego na porta
principal”, de Marco Abujamra e
João Pimentel, em cartaz no Rio.
Que violão toca o Jards, “Macao”
pros íntimos... Sou fã dos dois, conheço
mais a obra de Gil, mas o luxo
e a inteligência de Macalé, artista,
enter tainer, humorista, cantor, ator,
autor, me assombram a cada dia.
Não é uma voz fácil. Como diz
Luiz Melodia, é para “ouvidos atentos”.
Jards é maldito. Xingou multinacionais,
queimou-se um bocado,
o boquirroto. Gil, num depoimento
gravado quando ministro, comentou,
no filme, esse aspecto, de um
modo que me entristeceu.
Disse Gil que houve artistas de
sua geração, como ele próprio e
Caetano, que cuidaram de suas carreiras,
construíram cada trabalho
com uma certa lógica, em que as
roupas, as capas, os conceitos musicais
e poéticos, tudo fazia um sentido.
(Inclusive, suponha-se, Caetano
não ter dado a Jards o crédito pela
sonoridade de “Transa”, um golpe
duro na sua... carreira.)
Gil diz que, outros, como Macalé,
não cuidaram da tal carreira. Abandonaram-
na ciclicamente. Disse-o
com um certo ar de lamento, sem
nada acrescentar do ponto de vista
de um julgamento de valor. Depois,
respondendo a uma pergunta, admitiu,
com franqueza, que transigiu,
que cedeu, que fez concessões. E
justificou: é lógico!, afinal, a própria
existência do “outro”, a admissão
de que não estamos sós na dinâmica
social, pressupõe concessões,
então como é que não se vai fazê-las?,
Gil altissonou com uma veemência
daquelas que tornam a sentença
uma evidência inclemente.
“Faz parte do ethos e do pathos”,
acrescentou, e aí eu me lembrei que,
em cena anterior do filme, Macalé
fala dos patos (sem agá), dizendo
que, certa vez, as aves, ao ouvi-lo
cantarolar à beira de um lago, responderam
aos volteios de seu canto
cheio de detalhes, repiques, síncopes,
repetindo suas inflexões. Pois,
segundo Macalé, é da natureza dos
patos ouvir música e responder, e
eu acredito: isso ocorre com outros
pássaros também, quem já cantou
na floresta sabe.
O Gil, ao proferir essas verdades
elegantes, não tinha qualquer obrigação
de atentar para o fato de que,
mesmo tendo abandonado ciclicamente
sua carreira, Macao, o conjunto
da obra, ainda que difícil, para
loucos e raros (ao menos por aqui,
pois em Paris ele seria visto como
um grande cantor histriônico, de
uma expressividade singularíssima)
constitui um todo caótico e uno, paradoxal,
complexo, culto.
Gil não tem qualquer obrigação,
tampouco, de atentar para outro fato:
o de que, entre não transigir e
não fazer concessão alguma (impossível)
e fazer o máximo de concessões
possíveis, há gradações. E que
a evidência de que Macalé fez poucas
concessões constitui a formação
da figura que ele é, confere-lhe a
sua originalidade, a sua qualidade
única. Gil não tinha obrigação de dizer
isso nem de prestar qualquer
homenagem ao cantar demiúrgico e
ao violão pós-Baden Powell posto
no liquidificador das emoções e do
sofrimento e do amor mais intransigentes,
e à sua maneira própria de
ser pop sem parecer pop.
Num documentário de Andrucha,
Gil, citando Andy Warhol, diz que, se
ser pop é gostar das coisas, ele é pop
no sentido de “gostar de gostar das
coisas”; se Gil, então, gosta tanto de
tudo, se abraçou tanto o mundo em
seu arcabouço tropico-antropofágico,
se Gil elogiou tanto o trabalho de Sandy
e exaltou tanto Ivete Sangalo, será
que custava muito deixar umas migalhas
de reconhecimento ao gênio de
Macalé, o pato? Não precisava nem
dizer, como disse o Zé Celso Martinez
Corrêa no filme de Abujamra e João
Pimentel, que Macalé é da estatura
artística “de uma Maria Callas ou de
um Oscar Niemeyer”. A gente sabe
que Zé Celso sempre fala através de
hipérboles, embora faça um certo
sentido, para quem olha o Macalé como
um ser múltiplo, um mascarado
de Gotham City, um super-homem
mautneriano mas abençoado com
mil-e-uma técnicas e arquiteturas,
compará-lo a Callas e a Niemeyer sem
que isso se converta numa equação
de equivalência perfeita, ora pô!
Vejo, talvez equivocadamente, se
for me corrijam, a fala de Gil como
uma justificativa. Um statement que,
mesmo inconscientemente, ilude o
receptor, induzindo-o a mergulhar
numa hiper-relativização que na
verdade não relativiza nada e acaba
por desaguar no maniqueísmo. O
certo é cuidar da carreira, o certo é
embarcar numa lógica contínua, o
certo é fazer as concessões que a
cada ser forem adequadas, e cada
ser colherá os benefícios (de agir
assim) enquanto os que não rezarem
por essa cartilha, os “outros”,
colherão a erva daninha do “maldito”,
saco de gatos no qual Macalé,
junto com tantos outros, foi jogado.
Primeiro para se o excluir do “sistema”
e, depois, para trazê-lo de volta,
sob um selo que iguala e uniformiza,
para efeito de venda, todos aqueles
que não “cuidaram” de suas carreiras
e, mesmo assim, lá no fundo,
bem escondidas atrás das barricadas,
têm uma puta expressão artística
e são grandiosos e insólitos. Gil,
meu ídolo, não tinha obrigação de
dizer isso, mas a gente não controla
as expectativas sobre nossos ídolos
e, por isso, fiquei triste, mas vou lá
ouvir de novo o violão luminoso de
Gil e, depois, ver de novo o Macalé
brilhar no cinema. Não percam.
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