quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Os diários de Susan Sontag

Ícone da contracultura norteamericana nos anos 60 e 70 do século passado desde seu célebre Contra a interpretação (1966), conjunto de ensaios que a celebrizou, volta a reavivar-se o mito da ensaísta e romancista Susan Sontag (1933-2004) com a publicação de seu diário de juventude, Diários (1947-1963), o primeiro de três volumes previstos.

Diferentemente de Kafka, que mandara destruir a maior parte de sua obra inédita e inclusive seu diário (no que não foi obedecido), Susan Sontag não deixou nenhuma instrução sobre o que fazer com seus papéis e escritos inacabados ou não organizados.

Na introdução a este primeiro volume, que cobre o período dos 14 aos 30 anos da escritora, seu filho David Rieff admite que chegou a pensar em queimar a centena de cadernos que encontrou no armário do quarto dela após sua morte em 2004, aos 71 anos de idade, depois de prolongada luta com uma leucemia mieloide. Havia ali revelações a que talvez ela não quisesse dar publicidade. Mas quanto a isso Rieff já nada podia fazer, pois pouco antes ela havia vendido todos os seus papeis e livros à Universidade da Califórnia.

Ainda bem. Diários póstumos e cadernos de notas – e este é uma mescla de ambas as coisas – são úteis não apenas para satisfazer o que Valéry chamava ironicamente de “a gastronomia do afeto”, mas também para desvelar e iluminar o laboratório onde autores que marcaram época forjaram seu sistema de pensamento ou seus métodos de criação.

Sob esse aspecto, estes primeiros diários de Susan Sontag muito se assemelham aos cadernos de juventude de Albert Camus, com a diferença de que, para além das notas de leitura e dos exercícios de estilo, corre aqui em paralelo o enredo de uma vida levada na radicalidade. Relatos talvez ainda mais próximos são os de Cesare Pavese, cujo diário essencialmente filosófico e até metafísico termina em imolação romântica. Contudo, não por acaso uma das leituras frequentes de Susan eram os carnets de Henry James, o que mostra o quanto ela estava empenhada em se tornar não apenas senhora de seu ofício como também consciente dele em grau máximo.

Curiosamente, um diário brasileiro que cobre praticamente o mesmo período etário (dos 15 aos 30 anos) e mostra grau de precocidade não menor, com toda uma plêiade de autores lidos e igual desenvolvimento crítico, é o de Gilberto Freyre (Tempos mortos e outros tempos), mas aqui a honestidade manda dizer que Freyre o deu a público ainda em vida e, ao que parece, reescrito no estilo da maturidade.

“Aquilo que, um dia, parecia um peso esmagador mudou claramente de posição, numa tática surpreendente, deslizou embaixo do meu pé fugidio, transformou-se numa força de sucção que me arrasta e me cansa”, anota Susan nas páginas iniciais de seu primeiro caderno, sentença que, pelo acabamento e riqueza de imagens, prefigura o tipo de intelectual em que se tornará depois.

E o que lia nessa época? Dos clássicos aos modernos, de Proust a Saul Bellow, de Kafka a Philip Roth, de John Dewey a Wittgenstein, de Dostoievski a Gide e – pasmem – ao Machado de Assis de Memórias póstumas de Brás Cubas, possivelmente influenciada pelos estudos de Helen Caldwell sobre o escritor fluminense. Mais tarde Sontag se tornaria um dos maiores divulgadores – se não o maior – da obra de Machado nos Estados Unidos e em consequência no mundo, chegando a reputá-lo, em artigo publicado na revista New Yorker, o maior escritor já produzido pela América Latina em qualquer época.


-- Sontag aos 33 anos --

Aos 16 anos, confessou seu desapontamento com uma visita feita a Thomas Mann, então residindo nos Estados Unidos, depois de ter lido apaixonadamente A montanha mágica e outros romances do autor alemão. Achou “banais” os comentários de Mann e concluiu que eles traíam seus livros. Ao abrir casualmente A metamorfose de Kafka numa livraria, levou um choque, “uma pancada física” com “o caráter absoluto de sua prosa, pura realidade não forçada nem obscura”. E anotou: “Eu o admiro acima de todos os outros escritores”; ao lado de Kafka, Joyce seria “tolo”, Gide “doce” e Mann “oco e bombástico”. Mas abria uma exceção para Proust, “quase tão interessante” quanto Kafka.

A questão sexual é abordada com uma franqueza devastadora. Embora tenha descoberto sua homossexualidade ainda na adolescência, quando caloura universitária, e seus registros a respeito já sejam abundantes nessa época, aos 17 anos ela tentou dar marcha atrás e corrigir a rota, casando com um professor de sociologia. Permaneceu casada oito anos e dessa união nasceu David Rieff, agora prefaciador e compilador de seu diário. “Quem inventou o casamento foi um torturador astuto”, escreve. “É uma instituição destinada a embotar os sentimentos”. O divórcio foi facilitado por bolsas de estudos em Oxford e Paris, onde finalmente aceitou sua identidade sexual e iniciou uma série de relações que ela nunca permitiu se tornassem um assunto público, como a que manteve durante muitos anos com a famosa fotógrafa Annie Leibovitz.

Daí, sem dúvida, a hesitação de David Rieff na hora de selecionar as entradas do diário. “Será que minha mãe desejaria publicá-lo?”, se interroga Rieff. “O que sei é que, como leitora e escritora, minha mãe adorava diários e cartas – quanto mais íntimos melhor. Assim, talvez a escritora tivesse aprovado aquilo que fiz”, conclui.

Da estranha luz que este diário joga sobre a obra de Susan Sontag – uma obra decisiva que em nenhum momento faz suspeitar das incertezas da jovem de então – pode-se presumir o que vem por aí. Se a essas notas juvenis já não falta sabedoria, o que não esperar dos cadernos da maturidade?

::: Diários (1947-1963) ::: Susan Sontag ::: Cia. das Letras, 2009, 344 páginas :::
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* Eustáquio Gomes é autor, entre outros, do romance Paisagem com neblina e buldôzeres ao fundo (Geração Editorial, 2007) e do volume de crônicas A biblioteca no porão (Papirus, 2009).

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