quinta-feira, 4 de junho de 2009

O caso Simonal

Muito antes de Obama aparecer com o lema “Yes, We Can”, o cantor, ator e showman Sammy Davis Jr. escreveu uma autobiografia intitulada “Yes, I Can”: não a li, mas o sentido da frase era mostrar de que modo um jovem negro, aliás bastante feio, mas dotado de imenso talento conseguiu chegar ao estrelato.

A carreira de Wilson Simonal, contada de modo fascinante no documentário “Ninguém Sabe o Duro que eu Dei”, poderia ser uma versão brasileira desse espírito “yes, I can”.

Não me lembro qual dos entrevistados do filme, aliás excelente na escolha dos depoimentos, assinala o fato de que, nos anos 60, o papel do músico negro no Brasil era o de ser sambista: Simonal surgia como exceção, cantando outros gêneros de música, e, sobretudo, comandando ele próprio um show de televisão.

No meu artigo para a “Ilustrada” de hoje (assinantes do Uol leem aqui), tentei transmitir uma impressão que mistura minhas memórias daquela época com a experiência de ver agora os arquivos de Simonal.

Ele se comportava, de modo quase provocativo, como um negro americano. Lembro-me de um episódio da família Trapo, programa humorístico famoso da época, em que por algum motivo aparecia um “black” naquele caótico lar capitaneado por Otelo Zeloni. Era um negro altíssimo, mascando chiclete, riquíssimo: aos meus olhos de criança, e provavelmente aos de todo brasileiro na época, aquilo parecia um espantoso paradoxo. O americano –dominante—pode ser negro –dominado. Somos inferiores ou superiores a ele? Talvez a resposta fosse encará-lo à luz do ridículo, ou do exotismo.

Esse ridículo, esse exotismo, eram de resto o modo com que americanos, brancos ou não, tendiam (tendem?) a encarar os brasileiros. Vide Carmen Miranda.

Nossa vingança foi nos transformarmos nós mesmos em Carmen Miranda, durante o tropicalismo: Chacrinha era a caricatura de si mesmo, o patetismo de Teixeirinha era cantado a sério, mas com toneladas de ironia, por Caetano Veloso, e Glauber Rocha, com “Terra em Transe”, assumiu o delírio equatorial como um espelho, e o grotesco como depuração da realidade política concreta.

Acho que a mesma mistura de ironia e jogo para valer, entre levar-se a sério na medida mesma em que se assume um papel de caricatura, estava por trás da “pilantragem” de Simonal. Mas ele aplicou esse procedimento não à imagem do brasileiro abananado, mas do showman americano de sucesso.

Os americanos gostam de usar a palavra ídiche “chutzpah”, para se referir a um extremo de autoconfiança, a uma quase temeridade na certeza de que, impondo-se, a pessoa de talento alcançará sucesso. Não há maior exemplo de “chutzpah” no Brasil –onde essa característica tende a ser meio rara, eu acho— do que o show de Simonal com Sarah Vaughan. Ele não sabia falar inglês, mas fala. E não se intimida nem um pouco ao contracenar com a grande diva do jazz.

Não seria esse tipo de “chutzpah”, aliado a muita pilantragem, o que levou Simonal ao catastrófico ato de entregar seu contador, de quem suspeitava, nas mãos de torturadores do Dops?

O assunto é muito bem comentado por alguns dos entrevistados. Nelson Motta, o “Boni” da Globo, Miele, consideram que ele não tinha nenhum vínculo real com o sistema de informações da ditadura. Só quando foi chamado à polícia, depois de o contador fazer queixa contra ele por sequestro e sevícia, é que ele resolveu se apresentar como figura relacionada ao sistema repressivo.

Boni diz uma coisa que parece convincente: se ele fosse mesmo um dedo-duro do regime, os poderosos da época não o teriam abandonado à própria sorte. Simonal terminou preso, com efeito. E mesmo o contador não teria tido condições de levar o processo adiante, de prestar queixa na polícia por ter sido torturado no Dops, se Wilson Simonal tivesse de fato costas quentes com o regime. Chico Anysio, muito fluente na argumentação, pergunta: “afinal, até hoje nunca apareceu ninguém dizendo ter sido dedurado por Simonal”.

Claro que, vendo o cantor no auge da felicidade e do sucesso, torcemos para que ele não tenha sido pior, como pessoa, do que o documentário já mostra.

Quanto ao papel da esquerda, Artur da Távola e Ziraldo fazem raciocínios interessantes. Artur da Távola aproveita para criticar a imprensa, sua capacidade de assassinato moral. Ziraldo explica melhor, a meu ver, a atitude do “Pasquim” atacando Simonal. Não era permitido atacar o presidente Médici, o delegado Fleury... Simonal concentrava, como um pára-raios, tudo o que estava entalado em matéria de crítica ao SNI, à delação sistematizada, ao terror de Estado. Ninguém se incomodou muito, na época, em pensar no que o cantor pudesse estar sofrendo com isso.

Será que estava? O tempo todo, desde o começo? Ou só quando “caiu a ficha” de que sua carreira estava acabada? Infelizmente, o documentário não foi feito a tempo de ouvir o próprio Simonal. Ele aparece, já no fim da vida, num programa da Hebe, mostrando um documento da secretaria de Direitos Humanos atestando que “não há registro” de Simonal pertencer aos quadros dos informantes do SNI. Mas não sabemos o que ele tinha a dizer a propósito do seu contador, dos amigos do Dops, e mesmo de sua aposta em se dizer a favor da ditadura, quando o episódio começou a aparecer nos jornais.

Como espectador, fico pensando apenas: “a história não poderia ter acabado de forma diferente?” Tanta gente terminou reconciliada com a opinião pública, apesar de comprometimentos com o regime... Cito o caso mais fulgurante, o de Teotônio Vilela. Não é a mesma coisa, claro. Pois é, isso é que me deixa triste: não é a mesma coisa.
Escrito por Marcelo Coelho

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário e após avaliarmos publicaremos-o.